III Seminário Memórias do Corpo. Deslocamentos
Fotografia de Eustáquio Neves, Série Retrato falado, 2019 | Fragmento | Imagem cedida pelo autor
Em seu livro ensaístico “O narrador sensível” (2020), a escritora polonesa Olga Tokarczuk traz nas primeiras páginas a figura do peregrino do ano 1888. A gravura, de um autor desconhecido, publicada pelo astrônomo francês Camille Flammarion, mostra uma figura do homem em movimento, um homo viator que, como parece, chegou até as margens do mundo e admira, curvado, a beleza e a harmonia do cosmos. Corpos em movimento — quer seja voluntário quer seja involuntário — lançados ao trânsito em razão de causas políticas, religiosas, pestes, fome, guerras, conquistas, catástrofes e perseguição marcam a história da humanidade. A ideia de deslocamentos, selecionada para constituir a temática central do 3º Seminário Memórias do Corpo, compreende inúmeras questões de interesse em diversas áreas de pesquisa, reforçando uma perspectiva multi e interdisciplinar do evento. Uma rápida mirada na fortuna bibliográfica existente pode constatar o quanto o tema move-se por tratados documentais, diários e outras escritas de si, historiografias, desencadeando substancial força poética e política na literatura, nas artes visuais, na comunicação e no cinema. As diferentes acepções de deslocamento descritas pela experiência e pelo imaginário pensam a função das cartografias, o desenvolvimento dos meios de locomoção e suas metáforas, o planejamento das cidades, a conexão espaço-temporal da internet, inclusive fundando novos olhares e práticas (o flâneur, o voyeur, o zappeur, o cybersurfer). Em uma perspectiva dialética do olhar, a qual implica o reconhecimento de que tudo aquilo que se olha, olha de volta, os deslocamentos dos corpos e das memórias operam tal como rastros derridianos e colocam em funcionamento jogos remissivos e reflexivos de textos culturais. Em paralelo, o filósofo brasileiro Sérgio Cardoso descreve o olhar viajante dos etnólogos como aquele que procura, inspeciona e interroga tudo em suas viagens.
Por sua vez, o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov questiona o que não seria uma viagem, uma vez que a noção do espiritual e do material estão imbricados a uma ideia de narrativa, de mudança. Para ele, quem diz viagem diz mudança, assim para o filósofo e crítico cultural alemão Walter Benjamin quem viaja tem muito o que contar – resultado da dimensão da novidade, por meio da memória individual do marinheiro mercante, ou da tradição, armazenada como memória coletiva pelo lavrador sedentário. No entanto, Todorov não está tão interessado nos sentidos espirituais da viagem e, sim, em seu aspecto colonial, forjado nos contornos da noção de aventura e sua relação com o colonialismo/imperialismo, estritamente centrado nas formas de dominação militar, comercial e espiritual sobre os territórios. Não é à toa que para o historiador Sylvain Venayre colônia seja uma palavra feminina que implique uma forma de conquista que sobrepõe o amoroso ao militar. Por essa via, não raras as vezes o estrangeiro é visto como inferior, primitivo, monstruoso – necessitado de ser salvo pela Força e pela Fé. Para Todorov, tal percepção é a base do olhar colonial, o que o filósofo francês Michel Onfray chamaria de posição do missionário – aquele olhar lançado para o outro com certa comiseração e vontade de auxílio.
Se na peregrinação havia um sentido espiritual marcante, fazendo do caminho um meio para atingir a penitência, a iluminação e permitir o contato com o sagrado, os valores material e amoroso assumem mais preponderância nas histórias de aventura, pois, conforme contextualiza o filósofo italiano Giorgio Agamben, a noção de aventura alterna-se ao longo do tempo entre acepções positivas e negativas, muitas vezes baralhando as funções e os resultados do deslocamento. Com as guerras mundiais, a noção de deslocamento adquire novos contornos, associando-se fortemente a questões pragmáticas e de sobrevivência, especialmente no que se refere às migrações, fugas e expulsões, e, do outro lado, em exercício de um biopoder, guetoização, sequestro e extermínio, destruição de países ou a integração forçada a novos territórios. Entram em funcionamento o sentimento dépaysement bem como as fraturas subjetivas produzidas pelo exílio e pelos deslocamentos involuntários, questões bem assinaladas por pensadores como sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall ou da crítica cultural argentina Leonor Arfuch. Apartir da instauração de um novo estado de exceção em escala mundial após acontecimento inaugural do século XXI, o atentado terrorista de 11 de setembro (2001), ocorre proliferação de muros fronteiriços, corridas armamentistas, expulsões e genocídios, responsáveis por evidenciar a cólera dos nacionalismos xenofóbicos contemporâneos e reiterar o “princípio de separação”, tal qual pensado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Isso implica não somente na mobilidade e deslocamentos involuntários, mas também na invisibilização e no impedimento de circular dos corpos subalternos, questões que abordagens contra-hegemônicas discutem tanto nas culturas ocidentais como orientais.
Em outra perspectiva, igualmente conectada aos grandes conflitos bélicos da história, com a ascensão da contracultura nos anos 1970, o sentido da viagem retoma um aspecto espiritual, vivido agora como uma forma de dissidência radical do sistema, de distanciamento social e, acima de tudo, um modo contato consigo mesmo. No entanto, como sublinha Sylvain Venayre, há uma forma desinteressada de deambulação no mundo, fenômeno que inaugura a imagem do aventureiro moderno e funda uma “modalidade estética da existência”. A vontade de vaguear pelo mundo para conhecer a si mesmo inaugura espectros diferentes de nomadismo, de modo que o sociólogo francês Michel Maffesoli nomeia uma dessas variantes como “vagabundagens pós-modernas”. Em “Teoria da viagem” Onfray defende a paixão pela mobilidade como alguém que se lança constantemente a uma experiência iniciática, já que viajar é uma forma, antes de tudo, de procura. E em um mundo dominado por novas tecnologias de mapeamento (terrestre e planetário), cria-se, como sugere o pensador francês Jean Baudrillard, um sentimento de que não há mais territórios a descobrir, apenas o que conhecer, de modo que a ideia de viagem (inventora-descobridora de espaços) termina para dar lugar à forma capitalista e de consumo proporcionada pelo turismo. E se, por um lado, Onfray defende que o verdadeiro viajante é sensível aos detalhes e quer reter na memória a geografia por onde trafega, o sociólogo francês Edgar Morin afirma que o turismo, correndo em paralelo com a popularização das câmeras fotográficas, sugere que o turista tem experiências pobres e os registros são de uma memória de segundo grau, materializadas em fotografias.
Com os corpos deslocam-se a memória cultural e a individual, tornando-se, muitas vezes, parte de um mosaico de lembranças, uma memória em movimento, uma memória vivida, como destaca a pesquisadora alemã Astrid Erll. Os deslocamentos da memória acontecem também entre as gerações, no que foca o conceito da memória herdada da estudiosa romeno-norte-americana Marianne Hirsch. Há, por outro lado, historiadores e filósofos, tais como o já mencionado Walter Benjamin e o historiador francês Georges Didi-Huberman, que compreendem a memória enquanto um elemento orientador e dinamizador do passado, do presente e do futuro. Ou seja, a multiplicidade de estratos inscreve movimentos de desterritorialização espaço-temporais, de modo que os corpos são atravessados por fluxos constantes de choques produtores de deslocamentos. O historiador alemão Karl Schlögel, pensando em movimentos migratórios, discorre sobre setas que simbolizam os movimentos individuais e, sobretudo, coletivos, responsáveis por envolver o globo terrestre, por vezes cruzando-se. Setas essas que, por meio de um paralelismo conceitual expandido, podem ser concebidas de modo similar às cartografias translocais, como aquelas pensadas pelo antropólogo indiano Arjun Appadurai. A sensibilidade translocal alarga o imaginário territorial de um mundo coordenado pelos algoritmos, no qual os espaços físicos entram em disputa com territórios virtuais, e cria outras variedades de deslocamentos, bem como outras subjetividades (munidas de novos recursos e disciplinas para a construção do “eu imaginado” e dos “mundos imaginados”).
Tendo como base as diversas possibilidades de imaginar e refletir sobre os deslocamentos e sua relação com a memória e o corpo, a terceira edição do Seminário Memórias do Corpo deve contemplar em suas conferências, mesas-redondas e comunicações os seguintes eixos:
Memória – corpo – cultura
Memória – corpo – política
Memória – corpo – história
Memória – corpo – estética
Memória – corpo – geografia
O evento acontece no formato presencial de 28 a 30 de novembro de 2022 na Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Reitor João David Ferreira Lima, em Florianópolis. As atividades do seminário terão lugar no Centro de Comunicação e Expressão, Bloco B (Auditório Henrique Fontes, Sala Hassis e Sala Drummond). As inscrições estão abertas de 30 de agosto a 30 de setembro <maiores informações na aba lateral correspondente>